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INIMIGAS ÍNTIMAS


Joyce Cavalccante


Acreditem. Tinha apenas dezessete anos Evangelina quando casou com Eduardo, o Dr. Duda, como era chamado por todo mundo. Ele já ultrapassara os quarenta e embora fosse um dos mais moços fazendeiros da região, estava casando um pouco tarde para os costumes. Por todo tempo que andou solteiro, ele não deixou nem um minuto de plantar sonhos no coração das moças que o conheciam ou dele tinham ouvido falar. Era um homem bonito, de rosto moço e cabelos já ficando brancos. Pele tostada pela constante exposição ao sol por força de cuidar de suas terras. Herdara uma grande extensão delas. Na sua fazenda, uma cerca não avistava a outra.

Nunca se apressara em encontrar uma mulher para casar pois considerava que sua mulher mesmo era a Jibóia. Tinha abuso pelas rodinhas sociais, ou fosse da cidadezinha de interior mais próxima à fazenda, ou fosse da marinha capital do estado que ficava há uns duzentos e trinta quilômetros de distância. Preferia ficar lendo ou ouvindo rádio no casarão que há duzentos anos estava encravado no coração da propriedade. Não era de falar demais e raramente encontrava os parentes e amigos, se não fosse para resolver assuntos ligados aos interesses da terra. Apesar desse gênio esquisito, era visto como um homem culto e agradável. Formado em direito, daí o título de doutor antes do apelido.

Já Evangelina, ao casar com dezessete anos, não fazia mais do que cumprir a praxe daquele tempo e daquelas bandas. Mais velha do que isso já começaria a ser vista como moça encalhada. Que agradecesse a Deus ter tido a sorte de conseguir tão bom partido e tão cobiçado homem, dizia-lhe a mãe. E que a ele fosse obediente, aceitando o encargo que Deus lhe tinha reservado. Uma tia, irmã de seu pai, completava tais conselhos dizendo que mulher casada feliz é a mulher conformada. Evangelina a tudo tudo sem dizer palavra. Deixava passivamente que lhe tirassem o vestido de noiva e vestissem um outro de musselina branca, mais leve, apropriado para o almoço de arromba que Eduardo estava dando na fazenda para comemorar o casamento.

Ao pisar nos tijolões de sua nova casa seu coração assustou. Esforçou-se e pisou duro e firme, pondo o pé direito adiante do esquerdo que era para dar sorte e vencer.

Encontrou um casarão de dar gosto com tudo do bom e do melhor. Os próprios convidados, amigos do noivo ou do pai dela que nunca tinham estado por lá, ficaram impressionados com o luxo e conforto havido na casa, fazendo contraste com o temperamento austero do dono.

Encontrou, também, uma criadagem apropriada para atender aos desejos de uma rainha, e encontrou Rita.

Homem não pode viver sem mulher, lhe diziam, senão poderia ficar doido. E era essa a serventia de Rita.

Todo mundo sabia e comentava. Aconselhavam à jovem noiva maneiras e maneiras de como contornar o problema com sabedoria. Tratavam o assunto como um detalhe menor diante de sua boa sorte. Ela, porém, não engolia aquela negra na vida do marido. Não teve vez para dizer a ele que se livrasse daquilo e que aquilo não era direito, enquanto ainda era noiva. Fez de conta que não tinha conhecimento do caso. Esperou que o período de noivado passasse porque tinha fé que a negra ia desaparecer assim que ela botasse os pés dentro da casa. Contava em nem encontrar com ela na vida, mas foi justamente Rita, a primeira pessoa que avistou quando entrou na sua nova casa.

Diziam que a primeira pessoa que a noiva vê quando entra em casa é quem determina o sexo do primeiro filho. Se isso fosse verdade seu primeiro filho ia ser uma menina. Ficou duplamente com raiva pois queria que o primogênito fosse homem. Aquela negra alí, apresentada, metida, só podia ser para dar urucubaca. Trazer desgraça.

Rita tinha um menino escurinho de olhos verdes que andava solto dentro de casa com as pernas bambas e o nariz escorrendo. Devia ter uns dois anos. Na cara, escrito que era filho de Eduardo. Evangelina estava decidida a não tolerar nada daquilo pois embora encabulada, era filha de um homem que quebra mais não verga. Seu pai era um temido chefe político e dele deveria herdar a coragem. Ia esperar que o próprio Duda inventasse o sumiço dos dois. Se isso não acontecesse por bem, ela ia fazer com que acontecesse por mal.

O coração um fel porque na hora de ser servido o almoço viu a preta toda vestida de estampados comandando a criadada, mandando uma delas trazer a travessa cheia de sarapatel e colocá-la numa das pontas da mesa. Daí o sarapatel, o pirão, o arroz, a paçoca, o cozido, o baião de dois, a galinha, o perú, o camurupim pescado ali mesmo no açude da fazenda e o capote guisado, perderam o gosto. Os doces também. Tanto doce bom e ela não conseguia nem provar. Tudo por causa daquela negra enxerida.

Já eram bem duas horas da tarde quando se despediram dos últimos convidados. Ela e o marido ficaram de pé no alpendre, cumprimentando e agradecendo a presença de todos. Rita sempre ali à distância de um grito. Evangelina não perdia a negra de vista nem que fosse com o rabo dos olhos. Quando o último dos convidados se foi, Eduardo passou o braço pelos ombros da mulher e a conduziu até a saleta onde se lia e ouvia rádio. Lá sentou na sua cadeira predileta, pôs os pés em cima de um banquinho estofado, acendendo seu cachimbo. Estava corado e tinha um ar feliz. Evangelina sentou na rede de tucum e começou a balançar-se fazendo os armadores ranger. Pensava ela: essa é a hora de conversar com ele sobre a safada. Dava pra ouvir o barulho dos talheres e das louças sendo lavadas e guardadas. A conversa alegre das negrinhas na cozinha e Rita dando ordens, liderando a operação. Evangelina contava até três e dizia a si mesma, assim que der três vou começar a falar. Mas engasgava e perdia a voz. Olhava para o relógio e decidia: daqui a quinze minutos começo a falar e dane-se. Se ele não gostar, que não goste. Mas passados os quinze minutos nada aconteceu pois Duda ressonava com o cachimbo entre os dentes. Ela, sem poder mais nada fazer, perdia seu olhar no desenho de brilhante e platina que emoldurava o minúsculo mostrador de seu reloginho de ouro, presente do pai quando ela passou no exame de admissão ao ginásio.

Não conseguiu tirar a negra da cabeça. E tão perdida estava em pensar nela que nem susto tomou quando a viu entrar pela porta e deslizar até onde estava o Duda. Silenciosamente, também viu a negra tirar o cachimbo da boca de seu homem e depositá-lo no cinzeirão de prata que havia no chão, ao lado da cadeira.

Ao fazer esse gesto a negra olhou para Evangelina significativamente, como quem diz essa é a última vez que faço isso, de agora em diante é tarefa sua. Evangelina desviou o olhar com ar de indiferença e continuou a balançar-se, atitude que fez a negra entender que não precisava de ensinamentos. Quando a negra deu as costas, a moça branca aproveitou para fazer-lhe um muchocho infantil. Era de certa forma, uma vingança.

Por não ter nada o quê fazer, nem saber o quê devia fazer, levantou-se da rede e foi até a estante olhar os livros do marido. Ele tinha muitos. Só naquela saleta tinham três estantes enormes forradas deles. Ela distraiu-se lendo as lombadas de uma por uma. Deparou-se, então, com um título muito interessante e que sempre lhe aguçara a curiosidade. Encadernado em vermelho com letras douradas, estava lá, "O Crime do Padre Amaro", e em letras também douradas porém menores, o nome do autor, Eça de Queiroz. Suspirou. Sempre tivera vontade de ler aquele livro mas a mãe nunca tinha permitido. Na casa de seus pais havia uma prateleira onde todos os volumes lá expostos tinham sido carimbados com os seguintes dizeres: "Impróprio para senhoritas". Assim, nem ela nem suas duas outras irmãs tinham o direito de tocá-los. Celina, que era a mais espevitada de todas, ousara uma vez roubar um deles e ler escondido. Foi um Deus nos acuda quando o pai descobriu que, por trás da capa que ostentava o inocente título de "A Vida de Santa Terezinha", estava toda malícia e permissividade do "Vermelho e o Negro", de Stendhal. Não era tão fácil enganar os pais.

Quando o marido acordou de seu breve cochilo, coincidentemente, Evangelina estava folheando o próprio "Crime do Padre Amaro". E, enquanto ele bocejava e sorria, ela se virava de costas para esconder o livro que tinha nas mãos, detalhe que o marido não demonstrou notar. Em vez disso, convidou-a para dar um passeio pela propriedade dizendo, venha conhecer o que agora é seu. Com os braços rodeando seus ombros, conduziu-a carinhosamente até o jipe estacionado embaixo do pé de joá.

Rodaram por toda tarde. Andaram de extremo a extremo da fazenda. A propriedade parecia não ter fim. Nem sempre as estradinhas mal paradas, abertas no mato a facão para dar passagem ao jipe do patrão, estavam em boas condições. O carro sacolejava e estremecia. Num desses solavancos Evangelina foi parar quase no colo de Duda. Ele, então, diminuiu a marcha e puxando-a falou malicioso:

- Fique por aqui que é menos perigoso.

Nessa hora as orelhas de Evangelina esquentaram como chapa de fogão. Sentiu vergonha e uma coisa gostosa. Um caldo quente escorrendo por dentro. Mesmo assim falou:

- Pára Duda. - E voltou para seu lugar.

Pelo caminho iam parando para cumprimentar um ou outro morador, ou algum empregado que, por ser aquele dia um domingo, estava no mínimo, voltando da farra. Eram bem umas seis da noite quando chegaram de volta.

Evangelina entrou na sua nova casa pela segunda vez. Estava feliz e foi direto lavar as mãos pois ouviu a negra dizer desse jeito:

- Dr. Duda, o jantar tá na mesa.

Chegou e sentou-se em frente ao marido. Como por encanto viu uma mesa toda posta com apetrechos para um lanche gostoso. Coalhada, milho cozido, canjica, carne assada, arroz e ovos estralados.

Após o café com bolachas, Duda disse para a mulher:

- Vá logo se arrumando para dormir que eu vou ouvir o noticiário no rádio. Vou ouvir a Hora do Brasil. Depois eu vou.

Nesse momento Rita começou a tirar os pratos da mesa. Duda grunhiu para ela:

- Rita, pede a Gracinda pra fazer esse serviço e vá ajudar D. Evangelina a se trocar.

Ouvindo isso Evangelina levantou os olhos claros, que ficaram mais claros ainda. Preferia que a mulatinha Gracinda, outra empregada, viesse ajudá-la. Ia dizer qualquer coisa desaforada mas não disse ali, disse mais tarde quando estava no quarto acompanhada só de Rita:

- Não preciso da ajuda de ninguém. Pode ir embora.

Rita não respondeu mas também não arredou o pé dali. Olhava com humildade e doçura para a nova patroa, talvez procurando a chave de seu código. Talvez refletindo como conseguiria se fazer querida por aquela mulher tão bonita, de pele clara e cabelos cinzentos, com a cara de um anjinho. Uma santinha. Mas, parecia que a moça branca não queria muita amizade com ela. Deu para saber logo que não era de muita conversa. Deveria obedecer as ordens do Dr. Duda e ao mesmo tempo queria agradá-la.

Quando viu que a negra não ia sair mesmo de seu quarto, Evangelina enxugou os olhinhos lacrimejantes e tentou desabotoar-se. Não conseguiu. A carreira de botões imitando pequenas pérolas que fechavam seu vestido por trás, eram inatingíveis para quem o vestisse. Tinha de pedir a ajuda da negra fedorenta. Disse então de maneira bem estúpida:

- Vem cá e me desabotoa aqui. Depois pode ir.

Rita ensaiou dar um sorriso. No entanto, manteve a discrição e aproximou-se das costas da outra. Não só a desabotoou como tirou carinhosamente seu vestido pela cabeça, esperou que ela sentasse na cama e tirou-lhe os sapatos. Deixou que ela mesma tirasse suas ligas, mas ajudou-a a puxar as meias.

Enquanto a moça estava no banheiro, ela dobrou e alisou tudo. Girou os olhos ao redor daquele quarto. Sentiu saudades das muitas noites que tinha dormido ali. Fitou a cama na qual, até a noite passada, tinha dormido, e dela se despediu. Pensou em não pensar. Acendeu um candeeiro porque o gerador da fazenda era desligado toda noite às dez. Esperou que ela voltasse, e quando ela voltou, esperou que ela deitasse, e quando ela deitou, cobriu com um lençol seu corpo. Evangelina chutou os lençóis dizendo que não tolerava dormir coberta. Disse isso mais para espezinhar a negra, que foi saindo calada do quarto do casal.

Não teve mais tempo para se preocupar com aquilo porque o pânico bateu com força na expectativa do que iria se passar ali. Ia, dali a alguns minutos, se transformar de moça em mulher. Suava. Encolhia-se todinha em posição fetal e esperava que aquela noite passasse depressa. Queria saber como se sentiria na manhã seguinte.

Eduardo veio depois de ter dado ordens e boa noite à Rita. Veio fazendo barulho, um barulho que acelerou o coração de Evangelina. Entrou no banheiro e quando saiu de lá, caminhou direto para o quarto fechando a porta atrás de si.

Rita correu para escutar tudo. Sabia que o patrão ia ser bom com a moça pois coração grande ele tinha. Mas mesmo, assim tinha pena dela, tão novinha. Tinha pena de todas as mulheres que passavam pelo que ela já tinha passado. Ainda bem que é só uma vez na vida.

Lembrou-se de tudo que tinha acontecido, há uns cinco anos, com ela mesma. Tinha treze anos. Era mais nova que a moça. Sua mãe tinha morrido fazia uns dois anos e ela tinha sido sua substituta nos serviços da Casa Grande, pois só ela sabia das coisas que o patrão possuía. E só também ela sabia do que ele precisava. Quando sua mãe ainda era viva, mas já começava a ficar doente e velha, foi lhe ensinando a lida. Lhe ensinando como se curava os queijos, como se lavava, contava e guardava os pratos e os talheres, como se fazia a comida. A medida que a doença foi tomando conta dela, ela foi entregando os pontos e deixando os afazeres cada vez mais nas mãos de Rita, que era pequena ainda mas muito espertinha.

Era uma negrinha com corpo formado de mulher desde cedo. Baixinha da bunda grande, olhar matreiro e sorridente. Nem bem a mãe morreu deixando-a sozinha no mundo aos cuidados de Deus e do Dr. Duda, pois homem bom estava ali, ela já tinha assumido todo controle da casa e a autoridade entre as outras negrinhas inclusive mais velhas do que ela. Tudo porque sabia se dedicar, sabedoria que lhe foi transmitida por herança materna, coisa vinda de gerações em gerações de pretos servindo aos brancos como o destino mandava.

Mesmo tocando toda essa responsabilidade, a menina não esquecia de que era criança ainda, e nas folguinhas que conseguia corria para o açude e se refrescava, principalmente nos finais da tarde quando o calor é maior. Brincava também ainda com suas bonecas de pano, conversava com elas e até hoje as conservava. Brincava só à noite quando se trancava no quartinho que tinha sido dela e de sua mãe. Dormia só, privilégio conquistado por herança e por merecimento. As outras empregadas dormiam todas juntas num quarto maior e afastado da casa, depois da latada de maracujá do quintal. Durante o dia inteirinho ela trabalhava. Acordava às cinco.

Um dia, vindo do banho de açude, era num domingo, encontrou com o patrão mexendo no roseiral que ficava ao lado do quarto dele. Era por esse caminho que ela passava toda tarde depois do banho. Passava com discrição arrodeando a casa e entrando pelos fundos, pois sabia que seu vestido molhado colava no corpo e a deixava descomposta.

Corriam boatos pela cozinha que o doutor dormia com a Isaura, uma morena alta e mais velha, que cuidava das cabras lá por perto das plantações de canarana onde morava. Era viúva. O marido tinha sido esfaqueado numa briga besta de fim de festa. Isaura, com a licença do doutor, continuou morando na casa que ocupara com o falecido. Ele tinha sido um dos vaqueiros sob as ordens de Duda. Ver mesmo ela com o doutor, até aquele dia, ninguém nunca tinha visto. Eram só falatórios. Também um homem daquele não podia viver sem mulher. Ele trabalhava o dia inteiro e claro que precisava espairecer.

Pois bem. Naquele dia, quando ela vinha passando pelo roseiral e deparou com o doutor podando as plantinhas que tinham sido plantadas pela mãe dele, vinha justamente pensando nisso. Nele e na Isaura.

Ele, vendo a menina se aproximar, lambeu o corpo dela com os olhos e pediu que o ajudasse. Que segurasse um galho enquanto ele cortava o galho vizinho. Ela olhou para seu próprio corpo exposto por causa do vestido molhado. Olhou-se como quem diz, mas eu estou com essa roupa. Não disse nada contudo. Obedeceu. Segurou o galho. Nessa segurada ficou bem pertinho dele, não por querer, mas por precisão. Podia ouvir sua respiração bem forte, como se estivesse cansado. Terminando a tarefa ele virou para ela e disse:

- Mas você está toda molhada. Você pode se gripar.

Ela respondeu sem levantar os olhos e bem depressa:

- Espere aí que eu vou trocar de roupa. Volto logo pra ajudar o senhor.

Ele respondeu: - Não precisa. Tem toalha no meu quarto.

E nisso foi passando a mão pelos seus ombros, amolecendo o olhar, e empurrando seus passos para o quarto dele. Lá tudo aconteceu. Ela chorou baixinho por causa da dor, uma dor aguda que era como se estivesse sendo partida em duas. O sangueiro escorreu e ela ficou com muita vergonha. Ia lavar aqueles lençóis sem ninguém ver. Ele estava pesado e arfando em cima dela. Ela mal agüentava tanto peso. Depois que ele rolou para o lado, ela fez o gesto de quem ia se levantar pra continuar suas tarefas. Ele não permitiu. Puxou-a mais para perto de si e a abraçou com jeito, assim como se ela fosse um neném.

Seus pensamentos foram interrompidos pelo gemido dele, um ai bem grande puxado lá do fundo do coração, grunhido que só ele sabia fazer nessas horas. Concluiu: Pronto. Ele já desonrou a mocinha. Agora vou me deitar. E saiu na ponta dos pés.


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